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O título pergunta, em catalão, se vale a pena a Catalunha se separar da Espanha. Há dois anos, vivi com a Clarissa a experiência de passar o 11 de setembro em Barcelona. A Diada (Dia, Jornada) Nacional de Catalunya, quase 300 anos depois, relembra o momento em que as tropas de Carlos III romperam, após de 51 dias de cerco, as forças que defendiam a capital catalã em 1714. Feriado na região autônoma desde 1980, a data é marcada por manifestações pró-independência.

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Os catalães e as suas “senyeres”

As principais atividades ocorrem no Passeig Lluís Companys, bulevar que leva o nome do presidente catalão legitimamente eleito que foi capturado no exílio pela Gestapo, em 1940, e entregue ao ditador Francisco Franco para ser fuzilado. Barracas vendem todo tipo de produtos independentistas, de camisetas a livros, passando por canecas e peças de artesanato. Há estandes de outras nações com aspirações de secessão, como Quebec e Tibete. No fim do dia, shows de bandas de rock catalão animam a multidão, que grita slogans separatistas e agita suas senyeres (bandeiras da Catalunha). Barcelona recebe a visita de separatistas de todos os cantos dos Països Catalans, que incluem as regiões autônomas espanholas de Catalunha, Comunidade Valenciana e Ilhas Baleares, além de parte de Aragão, do Roussillon francês e a cidade de Alger, na Sardenha (Itália).

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A causa é justa, mas, com a cultura preservada pela democracia, a independência talvez não seja o melhor caminho

No dia 11 de setembro de 2010, a manchete do Avui, jornal declaradamente separatista, dizia: “Independência é economicamente viável”. Li a matéria inteira, mas não me convenci. Parecia mais uma daquelas pautas em que o repórter já tem todas as respostas antes de apurar. Os catalães se queixam do sistema de financiamento autonômico, que repassa boa parte da riqueza produzida nas regiões mais industrializadas da Espanha, como Catalunha, País Basco e Navarra, para outras mais pobres, como Extremadura e Andaluzia. Por isso pediram, sem a menor cerimônia, mais de cinco bilhões de euros para o Governo Central no fim de agosto. O porta-voz do executivo catalão, Francesc Homs, disse que a Catalunha não aceitaria “condições políticas, pois se trata de dinheiro dos catalães”, numa crítica aberta ao pacto fiscal espanhol.

Viabilidade à parte, a motivação de uma nação para se separar do estado a que pertence quase nunca é econômica. Ou alguém acha que Kosovo é mais “viável” como país independente? Quem defende a separação da Catalunha reclama raízes históricas, fala de 300 anos de dominação cultural, relembra o bombardeio de Barcelona pelas forças nacionalistas, em dezembro de 1939, o fuzilamento de mais de três mil pessoas, incluindo o presidente Companys, menciona a proibição de estudar e publicar em catalão durante a ditadura de Franco. Contra esses argumentos, fica difícil falar em economia.

Porém, se hoje a língua, a cultura, as tradições e todas as liberdades estão preservadas, para que se separar? Instituições como a Òmnium Cultural — criadora da extensão de internet “.cat”, cujo lema é “llengua, cultura i país” — apoiam referendos extraoficiais sobre a independência. Os resultados são comentados na imprensa. Chega a ser engraçado comparar as manchetes. “94,37% dizem sim à independência em Girona”, alardeia o Avui. “Apenas 24,13% comparecem às urnas”, celebra o El País, maior jornal de Madri.

Admito que tenho uma certa simpatia pela causa catalanista. Adoro a língua, a música pop e a literatura catalãs. Arrepio-me só de pensar que, durante mais de 40 anos, os fascistas espanhóis fizeram o possível para que tudo isso simplesmente desaparecesse do mapa. A més a més, se meu povo tivesse passado por tudo que os catalães sofreram nos tempos da ditadura franquista, detestaria ser súdito de um rei castelhano bêbado matador de elefantes, escolhido pelo próprio Franco como seu sucessor na missão de manter unido o Estado Espanhol. Mas sou cético sobre se a independência seria o melhor caminho para o povo catalão. Não é melhor permanecer unido a um estado forte? O principal mercado da indústria catalã é o interno. A secessão geraria um ressentimento que fatalmente causaria um boicote espanhol aos produtos da Catalunha. Ninguém em Madri ousaria brindar o Natal com uma taça de cava, o tradicional espumante catalão. E o Barça? Disputaria um emocionante campeonato nacional com Espanyol, Girona, Sabadell, Nàstic Tarragona e o possante Sant Andreu? Difícil imaginar…

Durante a Diada, tentei observar imparcialmente as atividades dos catalães. No fim do dia, ao comer um sanduíche num bar com a Clarissa, conhecemos um garçom brasileiro que morava em Barcelona havia quase uma década. Sua opinião sobre o tema foi uma das mais sensatas que já ouvi. “Isso para eles é uma festa. Gritam, cantam hino, agitam bandeiras, botam energia para fora… Mas amanhã esquecem tudo e se levantam para trabalhar e pagar as contas.” Visca Catalunya!

Na manhã deste 29 de setembro, Clarissa e eu passeamos a pé pelo centro de Madri para ver os efeitos da greve geral convocada por Comisiones Obreras (CCOO) e Unión General de Trabajadores (UGT), principais sindicatos de trabalhadores da Espanha, contra a Reforma Laboral proposta pelo governo de José Luis Rodríguez Zapatero. À exceção da massiva presença policial nas ruas e dos cartazes e adesivos conclamando os cidadãos a aderir ao movimento, em três horas de caminhada não vimos nada digno de nota. Alguns comércios haviam baixado as portas, outros funcionavam normalmente, sem incidentes. Na Puerta del Sol, turistas passeavam tranquilamente, apesar de notarem um clima estranho no ar.

Cartaz conclama os espanhóis a aderir à greve geral

Para quem vive na Espanha, a huelga general não é nenhuma surpresa, mas sim um evento programado há meses, amplamente discutido nos meios de comunicação e nas ruas. Todos estão se preparando para ela há vários dias. Para os turistas, entretanto, trata-se de uma surpresa. O estrangeiro que não fala espanhol tem dificuldade para entender a expressão huelga general, já que, para ficarmos nas duas línguas mais turísticas do mundo, o termo em espanhol é muito diferente de strike ou grève do inglês e do francês. Ao ver pontos de interrogação na cara dos turistas, chamou-me atenção um fato curioso sobre a palavra greve. Por que um conceito tão universal tem palavras tão diferentes em cada idioma, mesmo nos latinos, onde só o francês e o português concordam que deixar de trabalhar para reivindicar algo é fazer uma grève ou greve?

Muitas das palavras que usamos em português vêm do grego, mas a greve não entra nesse pacote. Foi justamente em Atenas que me dei conta do quão difícil é saber se se está no meio de uma quando não se sabe como dizer “greve” na língua local. Em abril de 2009, aproveitamos uma promoção da companhia aérea Iberia para passar uns dias na capital grega. Escolhemos um hotel baratinho na cara da estação de metrô de Viktoria. Na primeira manhã, encontramos o acesso à linha um fechado. Perguntei a um policial, em inglês, o que ocorria e ele me respondeu:

— Line one not work today and tomorrow.

— Thank you, sir. — agradeci-lhe. — Is it a strike?

— Not working. Sorry. Go to Omonia Square — respondeu-me, demonstrando que, assim como απεργία (apergía) não estava entre as poucas palavras que eu conhecia do grego, strike não constava no seu vocabulário de inglês.

O português adotou a palavra francesa "grève" sem o acento grave

Nós lusófonos tomamos emprestada uma palavra do francês para definir o ato de parar o trabalho para reivindicar algo. A palavra grève vem da Place de Grève, nome da Place de l’Hôtel de Ville, em Paris, até 1830. Essa praça situada à beira do Sena e diante da prefeitura era usada para carga e descarga de barcos por causa dos bancos de areia (grèves) e também era um ponto de concentração de pessoas sem trabalho. Coração da cidade à época, o local era palco de todas as manifestações e pouco a pouco o ato de parar as atividades para pressionas os patrões ganhou o nome grève. Como o francês, até o fim do século XIX, era a língua da cultura e da diplomacia na Europa, o português acabou adotando o mesmo termo.

Os italianos parecem ser os mais puristas quando o assunto é a etimologia da palavra greve. Se você pretende passar férias na Bella Italia, fique sempre de olho nos scioperi. É sciopero dei treni (greve de trens), sciopero dei vaporetti (greve dos barcos de Veneza), sciopero dei camerieri (garçons)… Até os jornalistas já fizeram sciopero contra a Legge Bavaglio, a Lei Mordaça de Silvio Berlusconi. A palavra sciopero vem do latim ex operari, ou seja, fora de serviço. Ou seja, além de vir do latim, a língua-mãe de todos os idiomas romances, quer dizer exatamente o que o conceito de greve significa: deixar de trabalhar.

Em Barcelona, nem todos os grevistas são "vagabunds"

Os catalães, conhecidos na Península Ibérica pela sua austeridade e pelo seu amor pelo trabalho, — ou, falando em bom catalão, por ser garrepes (pão-duros) — tinham que ser os mais implacáveis ao escolher um termo para definir o ato de cruzar os braços. Em catalão, greve é vaga, palavra que tem o mesmo radical que vagar e vagabund. Mas é claro que isso não faz com que tenham uma imagem depreciativa dos grevistas. De fato, poucos dias antes de 29 de setembro estávamos em Barcelona e notávamos uma mobilização tremenda de apoio ao movimento.

No castelhano, a palavra huelga também vem do latim. O verbo follicare significa, em latim tardio, soprar ou respirar, e deu origem a holgar, que significa estar ocioso, não trabalhar. O termo huelga também se aplica ao período em que a terra fica sem cultivo, ou seja, o tempo em que os lavradores podem respirar um pouquinho. Mesma origem tem a palavra folga, usada para designar greve em galego. Trata-se, claramente, de uma variação fonética, já que muitas palavras do galaico-português ganharam ditongos nas sílabas tônicas e um “h” no lugar do “f” em sua versão castelhana (folga -> huelga).

O fato é que hoje, na Espanha, 20% da população economicamente ativa não têm trabalho, são ex operari ou scioperai em huelga ou folga permanente, e façam ou não façam vaga ou grève, infelizmente ninguém vai notar a diferença.

Desde que decidi estudar catalão, a pergunta que mais ouvi de parte dos meus amigos e colegas espanhóis foi: joder, tío, ¿por qué estudias catalán? Não houve um só espanhol que não me olhasse como a un sapo de otro pozo ao descobrir que eu estava aprendendo esse idioma. Os motivos do estranhamento eram os mais variados, mas quase sempre eu notava um certo rancor pelo fato de muitos catalães não se sentirem espanhóis. Muitas vezes sentia na pergunta um tom acusatório, como se eu, por morar em Madri e estudar catalão, fosse um traidor. Além disso, diziam-me, o catalão “es una lengua inútil, ya que no se habla fuera de Cataluña y todos los catalanes también hablan castallano”.

No metrô de Barcelona, a Generalitat de Catalunya faz propaganda do curso de catalão básico oferecido aos estrangeiros

Começamos mal. Apaixonado pelo mundo dos idiomas, sempre acreditei que a utilidade de uma língua fosse um fator importante, mas não decisivo. Como quase todos, a primeira que estudei foi o inglês e a segunda, o espanhol. Com essas duas, você já pode conquistar toda a América Latina, EUA, Reino Unido e Irlanda e mais 27 territórios à sua escolha. Partindo do ponto de que o principal objetivo de uma língua é comunicar-se, eu já estava coberto na Península Ibérica, pois a Constituição Espanhola de 1978 é muito clara. Diz o item 1 do artigo terceiro do Título Preliminar:

El castellano es la lengua oficial del Estado. Todos los españoles tienen el deber de conocerla y el derecho de usarla.

De acuerdo. Isso significa que, mesmo se eu estiver em um rincão perdido na fronteira com Andorra, posso usar o castelhano. Ok, mas recomendo a todos os espanhóis ler também o item 3 do mesmo artigo:

La riqueza de las distintas modalidades lingüísticas de España es un patrimonio cultural que será objeto de especial respeto y protección. 

Foi exatamente essa riqueza que me despertou o interesse pelas outras línguas espanholas. O primeiro contato que tive com elas foi, surpreendentemente, estudando castelhano no excelente Instituto Cultural Brasil Argentina, no Rio. Usávamos o livro Hacia el Español e havia uma unidade que comentava aspectos dos quatro principais idiomas co-oficiais do Estado Espanhol. De cara, uma locução em euskera sobre o Museu Guggenheim cheia de “k” e “z”, que começava com seura museoa, “o seu museu”, e na qual só havia mais uma palavra transparente além de “museu”: kuadroak. Em seguida, um simpático comentário em galego sobre as belas paisagens verdes da Galícia e a alegria de poder cantá-las livremente na língua dos seus avôs. O terceiro era em valenciano e comentava a festa das Fallas em maio. E o último, em catalão, tratava das obras de Antoni Gaudí.

No mercado central de Cangas do Morrazo, as placas e cartazes estão em galego

É impressionante como em um país que esteve sob uma ditadura centralista por mais de 35 anos, durante os quais Francisco Franco fez de tudo para cimentar não só os outros idiomas, mas também os demais falares, obrigando todos os cidadãos a se expressar da mesma maneira, essas línguas tenham sobrevivido. Um fenômeno, se comparamos com a situação na Itália, onde línguas como o napolitano e o sardo são tratadas como meros dialetos. Andrea, dono do albergue onde nos hospedamos em Nápoles, contou-nos que, na escola, quando se dirigia ao professor em napulitano era solenemente ignorado. O resultado? Hoje entende mas não fala a língua da Campânia, já que em casa, como só a mãe era dali, não a praticava.

A longa noite do franquismo também deixou muitas sequelas nas línguas espanholas. Hoje, nas principais cidades da Galícia, Vigo e A Coruña, a maioria dos habitantes tem o castelhano como idioma principal, apesar de o galego ser obrigatório nas escolas. No País Basco, segundo o Diario de Noticias de Álava, só um de cada quatro alaveses é capaz de entender o euskera. Quando um repórter faz uma pergunta em valenciano a Rita Barberà, prefeita de Valência, a reposta vem em castelhano. Na Catalunha, muitos cidadãos, embora tenham o catalão como língua materna, têm mais facilidade com a gramática castelhana, porque durante muitos anos foi proibido estudar e normatizar o catalão.

Esta é a sede do Parlamento Basco, em Vitoria-Gasteiz. O lehendakari (presidente) atual, Patxi López, não fala euskera, mas o está estudando

Durante mais de três décadas, topônimos da Catalunha foram castelhanizados e pais foram proibidos de batizar os filhos com nomes catalães. Imagine ser brasileiro e não poder pôr no seu filho o nome João Paulo e ter que se contentar com Juan Pablo. Gerard Quintana, o meu cantor catalão preferido, chama-se Gerardo porque cometeu o pecado de nascer em Girona em 1964, quando os nomes catalães estavam proibidos. Durante um concerto em Madri, explicou que jamais pensou em corrigir o seu nome depois da redemocratização porque para ele o DNI (RG) é només un tros de paper (só um pedaço de papel).

O rolo compressor franquista causou situações curiosas como a “tradução” do nome da cidade de Sant Sadurní d’Anoia. Visitamos esse poblet da província de Barcelona para conhecer a cave da Freixenet, maior produtor de cava (espumante catalão). Também conhecemos o Francisco, dono do bar onde comemos entrepans (sanduíches) enquanto esperávamos a hora da visita. Francisco, que não se chama Francesc por causa da proibição de nomes catalães, contou-nos que o seu xará Franco mudou o nome da cidade para San Saturnino de la Chica. É que noia significa chica (menina) em catalão. Mas a cidade é d’Anoia por causa do rio Anoia. Como sempre, intolerância cultural e ignorância andam de mãos dadas.

Por falar em ignorância, uma das reações mais curiosas veio de um companheiro da Mondial Assistance, seguradora onde trabalhava quando comecei a estudar catalão. “Joder, tío, entiendo que te gusten los idiomas y ya hables unos cuantos, pero porque no estudiar una lengua de verdad como el alemán en lugar de perder tiempo con un dialecto del español. Obviamente não me dei ao trabalho de lhe explicar que o catalão não é um dialeto, sim uma língua neolatina tão antiga quanto o castelhano.

O excelente filme "A la deriva", do catalão Ventura Pons, ficou apenas uma semana em cartaz em Madri em uma só sala

Outra discussão curiosa tive com o Felipe, um madrileno que vive com uma brasileira. Conheci os dois na casa de uns amigos e, quando souberam que estava estudando catalão, veio a inevitável pergunta. ¿Por qué? Antes que eu pudesse explicar qualquer coisa, Felipe disse que “si el propósito de una lengua es comunicarse, no sé por que los catalanes insisten en hablar catalán en lugar del español, la segunda lengua más hablada en el mundo”. Julguei que ficar calado seria mais inteligente do que sugerir que o mundo inteiro adotasse o mandarim. Mas Felipe continuou: “además, es muy injusto que un catalán pueda trabajar en Madrid porque también habla español y yo no pueda trabajar en Barcelona”. Mais uma vez, em vez de perguntar o que lhe impedia de também aprender catalão, preferi o silêncio.

Se ele realmente estivesse interessado em conhecer os meus motivos para estudar catalão, eu mesmo não teria uma respuesta de manual na ponta da língua. Até hoje ainda não descobri o porquê. Enquanto isso, vou descobrindo uma cultura única. Vou conhecendo escritores como Jaume Cabré e Xavier Moret. Vou ouvindo bandas excelentes como Gossos e Els Pets. Vou me deliciando com os filmes de Ventura Pons. Vou escapando para terras catalãs de vez em quando e sou capaz de me comunicar com as pessoas na sua língua materna. E cada vez que me perguntam por que estudo catalão, fico calado, mas por dentro penso: si necessites un motiu molt concret per a estudiar una llegua, tio, és millor que ni ho comencis.

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